"Eu estava acabado”, disse o ex-baixista do Metallica, Jason Newsted, sobre como ele se sentiu quando o seu primeiro disco com o grupo, ...And Justice For All, saiu. “Fiquei tão desapontado quando ouvi a mix final. Apenas ignorei tudo, como as pessoas fazem."
O álbum, que completa 30 anos em 2018, é um dos grandes trabalhos do Metallica. Cada música é cumprida, cheio de nuances sobre devoção política (a faixa título e "Eye of the Beholder"), as atrocidades da guerra (o single “One”) e dificuldades em lidar com questões familiares ("Dyers Eve", “Harvester of Sorrow”). A música é especialmente intrínseca, com movimentos primorosamente construídos e difíceis marcações de tempo bem fora daquele gingado tradicional do rock n'roll – um feito e tanto para um grupo de garotos de vinte e poucos anos vindo da Califórnia. Desde seu lançamento, muitas das faixas se tornaram marcas do grupo e já foi oito vezes certificado com disco de platina, se tornando o segundo disco mais vendido no catálogo da banda. Ranqueado lá em cima na lista de melhores álbuns de todos os tempos pela revista Rolling Stone, e “One”, com sua batera destruidora e letra traumatizante, já foi tocada desde os caras do Korn até o duo acústico de flamenco, Rodrigo y Gabriela. Foi o disco que levou o Metallica ao mainstream, ainda que tenha uma falha que o persegue nas últimas três décadas: praticamente não tem baixo.
"Não consigo explicar quanta mágoa eu tinha – e ainda tenho – desse álbum", disse Newsted. Segundo consta, entretanto, o que ele fez no disco foi brilhante – apenas não está audível no resultado final. “Jason é um baixista incrível”, contou o co-produtor de ...And Justice à Rolling Stone em 2016. "Provavelmente eu sou uma das poucas pessoas no mundo, incluindo Jason e Toby Wright, o engenheiro assistente, que ouviu o baixo de ...And Justice for All, e elas são brilhantes."
Então, o que aconteceu?
Após a morte de Cliff Burton em setembro de 1986, o Metallica seguiu em frente imediatamente. "Decidimos que a melhor coisa a se fazer era continuar seguindo em frente", disse Lars. "Após duas ou três semanas do acidente com Cliff, não houve nem cinco minutos para processar isso porque, se parássemos, ficaríamos com medo de desaparecer no nada ou se afundar num abismo que não conseguiríamos voltar mais."
Eles foram até o seu amigo Brian Slagel, fundador da Metal Blade Records, para ouvir algumas sugestões e marcar audições uma semana após o enterro de Cliff Burton. Eles ficaram impressionado com uma das sugestões de Slagel, Newsted, que tocava numa banda de metal de Phoenix, Flotsam and Jetsam, uma banda tão apaixonada pelo Metallica que eles também já haviam feito uma música com o nome “Fade to Black”.
"Jason tinha uma energia positiva incrível e era como uma bola de fogo", lembra Lars Ulrich. “Ele chegou entusiasmado e pronto; teve a atitude certa, a química e sua personalidade, seu tratamento com o instrumento eram únicos. Ele não podia ser mais oposto ao Cliff, então não era como se colocássemos um ‘Cliff Junior’ no lugar."
Eles terminaram a turnê de Master of Puppets – "Jason foi incrível na ocasião", conta o guitarrista Kirk Hammett – e encontraram um senso musical claro no meio da estrada que não estavam esperando. "Nós crescemos muito, porque na próxima turnê, já éramos mais maduros", disse. "Estávamos um pouco mais focados. E também tocando bem. E disso tudo, surgiu o ...And Justice for All."
Mas, antes de entrarem em estúdio, eles decidiram sacudir a poeira e gravaram um punhado de covers para o que veria se tornar o EP The $5,98 E.P.: Garage Days Re-Revisited. Eles creditaram Newsted nas suas primeiras gravações como 'Master J. Newkid' e escolheram músicas que ele pouco aparecia, como no cover de “Helpless” do Diamond Head, que contém um break de contra-baixo desacompanhado e do cover de “The Small Hours” do Holocaust, com uma batida bem básica. O lançamento produzido de forma independente (ou “não tão bem produzido" assim, como dizem nos créditos) foi lançado no verão de 1987, poucos meses antes das gravações de ...And Justice for All com o co-produtor do Master of Puppets, Rasmussen.
A única música a conter os créditos a Newsted como compositor foi “Blackened”. "Eu escrevi [o riff principal] no baixo", lembra em entrevista a Guitar World. “Eu tava brincando com esse riff, e aí [Hetfield] começou a tocar junto, e a música começou a se formou imediatamente. Ele ter dito 'cara, esse riff é muito bom pra abrir o nosso álbum', me deu uma sensação de vitória, porque sou grato a ele por isso, e sou até hoje". O resto do disco foi composto por músicas de Hetfield, Ulrich e Hammett e a instrumental "To Live Is to Die” foi uma mistura do que Burton havia deixado e, não só isso, é aonde o baixo tem mais presença em meio a tantos riffs e ritmos agressivos.
Newsted reparou na ausência de graves e simplicidade do seu estilo de tocar. Gravou ele mesmo o baixo com um engenheiro, usando o mesmo equipamento do Flotsam and Jestsam, e foi embora sem ter ouvido aquilo de novo até tempos depois. Se você reparar nas tablaturas de ...And Justice For All, ela segue muito próxima do que Hetfield toca em cada música. "No Flotsam, eu não sabia muito sobre tocar baixo ainda, só sabia tocar bem rápido como na guitarra, basicamente, tocando a mesma coisa igual a todo mundo", contou em 2013. "Acabou que tudo estava dentro da mesma frequência – o meu baixo e a guitarra do James brigando pela mesma frequência. Se eu soubesse antes o que eu sei agora, teria sido diferente. Eu costumava ficar puto com isso, mas os trabalhos que tenho feito desde então, possuem algumas partes bem feias no meio deles”.
Os guitarristas da banda repercutiram bastante essa história durante os anos em entrevistas, especialmente depois do sucessor de Justice, o Black Album de 1991, que contém os hits "Sad But True" e “Enter Sandman”. Quando fizeram o disco, com o produtor Bob Rock, colocaram o som do baixo para Lars ouvir e assim criaram o que Newsted chamou de "uma verdadeira seção rítmica". "Dessa vez tinha um produtor pra ajudar o meu som não desaparecer entre a bateria e a guitarra”, declarou em 1991.
"O baixo ficou obscuro [em ...And Justice] por duas razões", explicou Hetfield em 2008. "Primeiro, Jason tendia a dobrar minhas partes na guitarra, então era difícil saber onde minha guitarra começava e onde o baixo saía. Meu timbre também era muito insano – muito agudo e grave, com pouca dinâmica. Minha guitarra engoliu todas as frequências mais graves. Jason e eu estávamos sempre brigando pelo mesmo espaço na mix". Em 1991, o frontman atribuiu ao produtor Bob Rock por arrumar toda a seção rítmica do Black Album. "Bob nos ajudou muito orquestrando e tirando o excesso de grave – fazendo a guitarra e o baixo trabalharem junto", contou. Na mesma entrevista, Hetfield brincou sobre Lars se meter na produção do Metallica: “Ele não mexe mais no som da guitarra – só no baixo”.
Entretanto, nem James e nem Lars confirmaram de fato o que aconteceu durante a mixagem de Justice, as histórias de diversas partes são todas muito consistentes. Em uma entrevista de 2015, o engenheiro de mixagem Steve Thompson deu uma pista do que ele se lembrava. O seu objetivo era "pegar o Master of Puppets e detonar aquilo”, mas depois percebeu que o que eles queriam era “mais um som estilo garagem sem baixo”. Primeiro ele equalizou a bateria de um jeito que fosse prazeroso para seus ouvidos, e Hetfield aprovou, mas Lars mudou depois de um jeito que Thompson detestou. Então, disse o engenheiro, o baterista jogou sua atenção para o baixo.
"Aí ele falou: 'viu essa linha de baixo?' E eu respondi: ‘Sim, incrível, cara. Ele arrebentou'. Então ele falou: ‘Eu quero que você abaixe o volume até onde você mal ouça na mix’. Eu falei: 'Você tá brincando, né?' e ele: 'Não, abaixa tudo'. Eu abaixei e ele falou: 'Agora tira mais 5dB’. Virei pra trás, olhei pro Hetfield e perguntei: 'Ele tá falando sério?' Aquilo me deixou chocado."
Em 2008, perguntado sobre o porquê do baixo ter sumido do álbum – baseado no que Newsted contou, de que a banda o boicotou severamente quando ele entrou – Lars disse que não foi intencional. "Justice era 'o show de James e Lars' do começo ao fim, mas não era "foda-se esse cara, vamos abaixar o volume do baixo"", contou. "Era mais, ‘nós mixamos, vamos nos presentear aumentando o volume da guitarra e da bateria’. Mas o que fizemos foi ter aumentado o volume de tudo até que o baixo desaparecesse".
"A culpa é deles, isso é certeza", disse Rasmussen em 2016. "Foram Lars e James que disseram pra abaixar o volume do baixo. Isso é fato porque eu perguntei pra eles."
No Black Album as coisas mudaram. "Antigamente, Lars e eu dominávamos a porra toda", disse Hetfield no processo de criação da banda em 1996. "Dessa vez, se estivermos no estúdio e ouvirmos Jason fazendo alguns slaps na música, vai ser tipo, 'Que merda é essa? Ok, contaremos até dez e vamos ouvir isso no contexto da música'. Eu notei com os anos o quão frustrado Jason era musicalmente e como muita coisa que ele escreveu não era gravado. Ele queria que as pessoas ouvissem as suas coisas."
Com um pouquinho mais de criatividade absorvida, Newsted permaneceu na banda até 2001, quando confrontou Hetfield sobre o lançamento do álbum do Echobrain, seu projeto paralelo. A confusão foi registrada no documentário Some Kind of Monster e Newsted foi substituído por Bob Rock no estúdio, para as gravações do St. Anger, depois permanentemente por Robert Trujillo, ex-baixista do Ozzy Osbourne. Tardiamente, ele obteve uma nova visão sobre o porquê de ...And Justice for All ter sido lançado daquela maneira.
"Tinha que que ser essa coisa onde psicologicamente, involuntariamente, subconscientemente, era: 'Ele não toca igual o Cliff. Não é a mesma coisa. Ele tá tocando esse speed metal com a palheta, igualzinho o James. Não é tão brilhante musicalmente; não vai ser a mesma coisa, então vamos abaixar isso aqui até onde se ouça quase nada", relembra. "Ainda em 1988, [começamos] a sentir um pouquinho da fama. Egos estavam crescendo."
A falta do baixo tem sido o ponto de muitas discussões entre os fãs do Metallica nas últimas três décadas. Com alguns programas caseiros e baratos e algum tempo extra em suas bandas, alguns fãs tentaram remixar o ...And Justice for All para que as contribuições de Newsted ficassem audíveis. A primeira a aparecer, em 2015, foi chamada de ...And Justice for Jason. O usuário que upou, Josh10177, não explicou como conseguiu fazer, mas pelo som, veio do EQing. Outras remixes foram mais ingênuas. Uma, upada pelo usuário James Mason em 2017, surgiu com um incrível detalhes de notas, separando as frequências dos instrumentos, sampleando do vinil para pegar mais o baixo e duplicando faixas que alguns fãs gravaram para reforçá-las. Apesar de não esclarecer, é interessante notar que as tracks do baixo para algumas músicas estão disponíveis separadamente da mix pelo Guitar Hero: Metallica, e talvez essa seja a fonte de algumas delas. Também existe uma remix onde supostamente fez o disco soar como se Cliff tivesse tocado.
"Uma vez em Pontiac, Michigan, um garoto veio e me deu o ...And Jason for All", conta Newsted em 2013. "Ele remixou as linhas de baixo no Justice. Eu ouvi falar sobre isso durante anos e nunca dei muita atenção. Ele falou: 'Cara, isso é pra você. Como deveria ter sido’. Fiquei tipo: 'Ok. Como deveria ter sido é o que foi e como marcou o mundo, mas legal. Tem baixo nisso? Ótimo, cara. Valeu, eu agradeço.'"
Hetfield e Lars concordaram com a declaração de Newsted de que, o que foi lançado era o que deveria ser lançado e assim que as coisas devem permanecer. Nos últimos anos, o Metallica tem relançado e remasterizado o seu catálogo, o mais recente, Master of Puppets, no ano passado. Rasmussen disse que os fãs deveriam esperar "versões alternativas" das músicas, mas não uma versão remixada de Justice.
"Esses discos são produtos de um certo período na vida; são registros da história e são parte da nossa história", conta Hetfield. "Ok, ...And Justice for All deveria ter um pouco mais de grave e o St. Anger ter menos agudo na caixa da bateria, mas isso são as coisas que fazem desses álbuns parte da nossa história".
Thompson também confirmou que a banda não tem "nenhuma vontade” de remixar o And Justice. “Eles querem deixar do jeito que é”, disse isso em 2018. "Eles podem remasterizar ou algo do tipo, mas só com muita masterização você consegue fazer. E pra falar a verdade, nem sei se as gravações originais podem ser salvas".
Apesar do fato de quererem manter as coisas do jeito que está, entretanto, a banda demonstrou arrependimento em como o Justice acabou sendo feito – eles estão dispostos a conviver com isso. "Eu queria que tivéssemos gravado melhor o ...And Justice for All", confessou Hammett. "Na época, soou como um conceito interessante. Mas esse álbum não me parece tão bom hoje em dia. Eu amo as músicas, mas a maneira que ele soa é estranho".
"Estávamos passando o trator e merdas aconteceram”, conta Newsted. "Eu peguei o bonde andando e só fui. Agora, se você perguntar pra eles, agora que têm tempo e são pais, sabe, vida, maturidade, eles tacariam o foda-se. Oops. Eles falariam isso na sua cara".
Em 2009, Thompson se sentou ao lado de Lars na introdução da banda ao Hall da Fama do Rock e experimentou algo semelhante ao que Newsted revelou. Trouxe toda a experiência de volta para ele. "Lars disse: 'E aí, o que aconteceu com o baixo no Justice?'", relembra o engenheiro. "Ele realmente me perguntou isso. Eu quis quebrá-lo na hora. Foi vergonhoso porque parece que sou o único responsável pela ausência da porra do baixo".
Via Rolling Stone